Este PL de nº 115/19, de autoria do vereador Nelson Hossri, estará na pauta da Câmara dos Vereadores de Campinas no dia 11/12/23 (segunda-feira), às 18h30.
Ele estabelece internações compulsórias aos usuários de álcool e outras drogas que estão em situação de vulnerabilidade social no centro da cidade de Campinas.
Importante informar à população que as internações (voluntárias, involuntárias e compulsórias) já estão previstas, desde 2001, na Lei nº 10.216 - a Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Clique aqui para acessar a Lei n. 10.216/01
É fundamental que as pessoas em situação de rua sejam cuidadas e compreendidas fora da lógica de degradação urbana proposta pelo PL.
Esse viés, além de racista (uma vez que a maioria da população em situação de rua é negra), favorece a especulação imobiliária do centro da cidade (observamos explicitamente este ponto na justificativa do PL, encontrada ao final do texto proposto).
Estamos falando de pessoas que, ao longo de sua história, vivenciaram incontáveis violações de direitos. Portanto, no mínimo, o atendimento a elas deverá articular ações das Políticas de Saúde Mental (a saber: os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS) e de Atenção Básica, através de equipamentos como os Consultórios na Rua.
Além do SUS, a construção do cuidado juntamente à Secretaria de Assistência Social e à Secretaria de Habitação são fundamentais para a garantia de seus direitos humanos.
Outro ponto: a internação compulsória somente poderá ocorrer mediante ordem judicial. Estamos lidando com um Sistema Judiciário atolado de processos e o PL propõe ainda mais ações judiciais!! Qual o sentido disso?
Não faz sentido algum esta propositura, pois, como já descrito, o contexto de internação já está previsto há mais de 20 anos e vem sendo construído, conforme cada demanda individual, dentro dos serviços públicos de saúde mental no qual estas pessoas estão (ou deveriam estar) inseridas.
A situação fica ainda mais delicada quando entendemos (e não é difícil entender isso quando olhamos para a história do vereador Nelson Hossri) que as internações compulsórias estabelecidas pelo PL são endereçadas às Comunidades Terapêuticas.
Comunidades Terapêuticas são estabelecimentos que em nada promovem sentimento de comunidade, ou acesso à comunidade, e muito menos cuidado terapêutico. Elas estão vinculadas à Política de Assistência Social (não à saúde!!!), muitas vezes com vieses manicomiais, afastadas de toda a rede de serviços que deveriam ser articuladas no cuidado integral às pessoas usuárias de álcool e outras drogas. Além disso, sua grande maioria é atravessada por ideologias religiosas e, mesmo que o PL preveja que as crenças das pessoas internadas sejam respeitadas, na prática sabemos que isso não acontece.
Não são raros os documentos que apontam graves violações de direitos ocorrendo dentro destes equipamentos, entre eles destacamos:
1) Relatório de Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, promovido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em conjunto com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (PFDC/MPF) - clique aqui para acessar o relatório
Então, qual a saída para o cuidado a esta população?
A saída é o que o Movimento da Luta Antimanicomial, e outros tantos movimentos deste país, vem defendendo desde a década de 1970: o cuidado em serviços de saúde mental, de base territorial, que conte com equipe interdisciplinar articulada com outras políticas sociais!!
Não precisamos inventar nada, mas precisamos urgentemente investir em serviços substitutivos ao modelo manicomial, como são os CAPS.
Para termos uma ideia, as Portarias nº 336/02 e 3088/11 apontam a necessidade de criação de um CAPSad do tipo II para cada 70 mil habitantes (no tipo II, o funcionamento acontece de segunda a sexta-feira, das 8h00 às 18h00, podendo ser estendido até às 21h00), e um CAPSad do tipo III para cada 200 mil habitantes (ou seja, com funcionamento 24h, 7 dias por semana, além de leitos de atenção à crise).
No caso de atendimento às crianças e adolescentes, de acordo com a Portaria nº 3088/11, o recorte populacional é de um CAPSij para cada 150 mil habitantes. Estes equipamentos também atendem adolescentes em situação ou circulação de rua com uso de álcool e outras drogas.
Para ler a Portaria nº 3088/11, clique aqui
Para ler a Portaria nº 336/02, clique aqui
Isso significa, ao pé da letra, que de acordo com a população do munícipio (1.140.000 pessoas, segundo o IBGE) Campinas deveria contar com 16 CAPSad e 8 CAPSij do tipo II.
Caso optasse por ter somente serviços 24h deveria disponibilizar 6 CAPSad à população.
Em 2023, a cidade apresenta 3 CAPSad do tipo III (ou seja, metade dos serviços previstos) e 1 CAPSad do tipo II. Em relação aos CAPSij, o município conta com 4 deles (novamente, a metade do proposto em lei), no modelo de atendimento de segunda à sexta-feira.
Retomando um ponto importante: os CAPS de tipo III possuem leitos de atenção à crise, ou seja, leitos em que as pessoas em crise podem permanecer pelo tempo necessário, de acordo com cada caso (e não de acordo com o tempo imposto, como acontece nas Comunidades Terapêuticas), sendo acompanhadas em seu território pela mesma equipe de referência que conhece a sua história e estabeleceu com ela vínculo terapêutico.
Ou seja, já está lá, a lei já existe!
O que falta é investimento (e interesse político) para que sejam cumpridas na íntegra.
Por fim, perguntamos: se tudo está legalmente previsto há mais de 20 anos, porque não houve investimento suficiente até agora?
No mínimo, a negligência do Poder Público abre brecha para que projetos de lei com vieses duvidosos sejam apresentados, e mais, sejam utilizados como instrumentos de barganha em véspera de ano eleitoral.
É preciso prestar muita atenção a estes discursos vestidos de boa conduta em nome do bem estar da população. É preciso entender quem fala, de onde fala, o que embasa seu discurso. É preciso conhecer a história para não mais repetí-la!!